terça-feira, 30 de agosto de 2011

FRONTEIRAS ENTRE A DEMOCRACIA E A MORALIDADE

Denis Lerres Rosenfield - O Globo

A democracia caracteriza-se por regras que asseguram a pluralidade de opiniões. Toda tentativa de coibir a liberdade de imprensa e de expressão de modo geral termina por inviabilizar essa pluralidade que é sua condição mesma de existência.

O país tem convivido, nestes últimos anos, com uma série de iniciativas que tem como objetivo cercear essa mesma liberdade. O caso do "Estadão" é o mais notório, pois continua sob censura após uma decisão judicial. No entanto, o país tem crescido precisamente por ter uma imprensa livre, capaz de denunciar todos os desmandos e descalabros no tratamento da coisa pública. O atual governo já mudou vários ministros e a cúpula de vários ministérios graças à sensibilidade da opinião pública que erigiu a moralidade na política em princípio da vida republicana. Sua condição é a liberdade de imprensa.

Contudo, o caminho não tem sido fácil. No governo anterior, presenciamos diversas iniciativas mediante audiências públicas e conferências nacionais, como as de Comunicação e Cultura, que tinham como objetivo um controle do conteúdo jornalístico sob o manto de uma suposta "democratização dos meios de comunicação". No caso, a democratização, em uma deturpação evidente do seu sentido, teria o significado de controle desses mesmos meios de comunicação. Note-se o papel desempenhado por audiências públicas e conferências nacionais para, em nome da democracia, restringir uma condição mesma de sua existência que é a liberdade de imprensa e de expressão.

Tudo indica que o novo governo está agora trilhando um novo caminho, distinguindo a modernização da legislação do setor de comunicações, uma regulação que se faz necessária pelo avanço tecnológico das últimas décadas, e o controle de conteúdo. Não esqueçamos que a legislação atual, ou, melhor, as várias legislações datam dos anos 70 do século passado, quando a internet nem existia. Nossas regras do setor são anteriores à revolução digital.

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Entretanto, muito menos atenção é dada a uma caracterização igualmente importante, a de que a democracia se define pela pluralidade de valores, pela coexistência, em seu seio, de várias noções do bem. Um bem maior apenas se situa acima de todos os demais, o de que a pluralidade de bens é um princípio que deve ser assegurado, sob pena de que as escolhas individuais de bens se inviabilizem. A liberdade de escolha é um valor que não é, nem pode ser, objeto de uma decisão "democrática".

Um pressuposto mesmo de uma sociedade democrática consiste em que cada cidadão possa escolher livremente o que considera como melhor para si, sem que o Estado lhe imponha um padrão de comportamento. A pluralidade de bens se situa na perspectiva mesma da escolha individual e não em um suposto bem que seria imposto pelo Estado. A condição da cidadania é que o indivíduo não seja servo, mesmo que a servidão possa ter uma aparência voluntária.

A contraposição que se estabelece aqui é entre o exercício da pluralidade de bens, exercido pelos cidadãos que se escolhem livremente, e uma forma de poder estatal que procura impor a cada um o que considera como sendo o bem coletivo. Nesse último caso, o bem supostamente coletivo terminaria usurpando progressivamente o bem individual.

O terreno é muitas vezes pantanoso, as fronteiras aparecem como de difícil delimitação, pois, dependendo do que esteja em questão, ocorre ou não a aquiescência dos indivíduos a um bem estatalmente imposto. Por exemplo, quando o governo estabelece regras que ditam como deve ser o comportamento individual em relação à saúde, pode ocorrer que as pessoas aceitem de bom grado essa diretriz, não se dando conta de que ela invade o que deveria ser uma prerrogativa estritamente individual.

Ocorre aqui um processo semelhante com o da liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, a saber, a existência de audiências públicas ou mesmo eventualmente de conferências, tendo como objetivo regulamentar o comportamento individual.

No entanto, a iniciativa é mais insidiosa, pois feita em nome do bem dos indivíduos. Alguns caem na armadilha, muito frequentemente porque compartilham de algumas dessas iniciativas, como certas opções particulares relativas ao que cada um entende por bem ou por sua saúde mais especificamente. A imposição estatal do bem pode ser, então, percebida como se fosse fruto de uma escolha individual. Aqui reside o perigo.

Há, por assim dizer, uma coincidência entre uma ideia individual e uma certa iniciativa governamental. A imposição surge disfarçada de moralidade. O valor moral é o seu disfarce. Acontece, porém, que essa coincidência é ilusória, pois o "bem" compartilhado tem um fundamento distinto: um provém da esfera estatal, outro da liberdade de escolha individual.

Dito de outra maneira, uma sucessão de imposições governamentais, cada uma delas em acordo com certas ideias de comportamentos individuais, pode terminar inviabilizando a pluralidade das noções de bem. O pressuposto de ambas é completamente distinto, mesmo que isto apareça sob a forma aparentemente democrática e legal da audiência pública.

A opinião pública é mais naturalmente propensa a se insurgir contra restrições à liberdade de imprensa e de expressão do que contra restrições governamentais que impõem condutas em relação ao que cada um considera como sendo o seu próprio bem. O problema, porém, é de mesma natureza.

O risco consiste precisamente em que as fronteiras entre a democracia e a moralidade começam a se apagar, com o Estado se elevando à posição daquele que sabe aquilo que é melhor para o cidadão. O risco consiste em que o Estado se coloque como uma potência moral, destituindo os cidadãos de sua capacidade de discriminar racionalmente aquilo que é melhor para si.

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